A viagem de Bern até Iniasa levara quase uma semana toda. Rubi estava exausta e se sentia imunda. Precisava de um banho, com certeza. O trajeto fora agradável, no entanto.
Durante o dia Grimm contava a ela lendas e histórias interessantes a respeito de diversos lugares e ela contava a ele sobre o que fizera em sua adolescência em Asnar e o porquê de ter sido expulsa por seus pais.
A noite dormiam juntos. Compartilhavam a barraca e seus corpos. Para Rubi era um momento muito aguardado, não apenas pelo prazer, mas também por ser um dos poucos momentos em que suas terríveis cólicas diminuíam.
Sobre o passado de Grimm ou seu destino ela pouco sabia. Sempre que perguntava algo a respeito ele desconversava, mudando o foco da conversa para uma diversidade de coisas diferentes.
Iniasa era uma vila pequena e agrícola. Os habitantes locais eram gente simples que temia o escuro e acreditava em todo tipo de superstição. Mas parecia haver algo de errado ali. Ou pelo menos foi o que pensaram Rubi e Grimm, já aos primeiros passos pelo lugar.
As mulheres tinham a expressão deprimida e sofrida. Andavam olhando o chão, pensando longe como se contando o tempo para que uma tragédia acontecesse. Já os homens estavam cabisbaixos, evitavam se olhar nos olhos, como se envergonhados da própria existência. Quando alguém sorria, logo engolia o riso, arrependido de tal ação.
-O que acha que está acontecendo? – perguntou Rubi, curiosa.
-Não faço idéia, mas não é problema nosso. – respondeu Grimm e continuou – Aquela casa grande ali me parece ser uma taverna, pode reservar um quarto enquanto eu tento conseguir um cavalo e uma carroça?
-Carroça? Pra que? – Rubi, sempre muito interessada, questionava sobre tudo.
-Não havia me dado conta de que, talvez, ao longo dessa viagem eu vá estar carregando um monte de tralha. – sorriu – Me espera lá, tudo bem?
Meio-dia. O sol queimava impiedoso no céu, mas sua luz mal fazia para trespassar as espessas nuvens que vagavam pelo ar, naquele dia. Sobre o teto da estalagem, um corvo grasnava.
Atravessando a porta Grimm pode observar que o lugar era bastante humilde. Duas mesas, ambas vazias, e um balcão pequeno compunham o salão principal. Uma escada levava aos quartos e uma porta, provavelmente a cozinha.
Com um aceno e um sorriso Grimm chamou a atenção da atendente e cumprimentou-a, muito polidamente, elogiou o lugar, apesar da simplicidade e perguntou por Rubi. Soube que ela tinha saído após reservar um quarto. Pediu por comida, carne, queijo, vinho.
Enquanto esperava, aproveitou pra questionar a garota a respeito do sentimento de melancolia que percorria a cidade. A resposta foi um simples “Não sei do que esta falando, está tudo bem”. Ao longo da manhã por todos os lugares onde passara procurando por uma montaria a resposta fora semelhante, isso o intrigava, mas não tinha tempo pra se preocupar com isso.
Terminara de comer e limpava o rosto e a barba quando Rubi entrou no recinto e sentou-se a sua frente. Sorria de orelha a orelha e olhava Grimm como o gato que olha o rato pensando em quanto tempo vai se divertir com ele, antes de devorá-lo.
-A julgar pelo seu rosto – disse ele – acho que encontrou uma mina de ouro ou o elixir da vida eterna.
-Ah – ela agia como uma menininha ingênua e simplória de novo – eu descobri porque as pessoas estão cabisbaixas. Mas não quero te incomodar com o assunto. Como você disse, não é problema seu.
Notando a curiosidade cintilando nos olhos do homem ela continuou: – Mas é uma coisa tão interessante. Macabra, cruel, mas interessante.
-Então me diga de uma vez!
-Pra quê? Não é algo que possamos resolver.
-Tem razão – concordou Grimm – é melhor esquecer o assunto.
-Tudo bem, tudo bem. Eu conto – decidiu a garota vendo que ele não morderia a isca.
-Há alguns meses atrás – começou ela – um padre novo chegou à cidade. O antigo tinha morrido de velhice parece. Depois de algum tempo por aqui, o novo sacerdote começou a exigir coisas um tanto embaraçosas das mulheres, dizendo que era uma prova de deus e que aquelas que não se submetessem seriam consideradas impuras, bruxas e seriam sacrificadas. O tempo foi passando e hoje o tal padre faz todo tipo de atrocidade com as mulheres daqui e os homens, com medo da punição divina não se levantam contra ele.
-Que tipo de atrocidades? – perguntou Grimm vislumbrando uma sorte inesperada.
-Pelo que me disseram, ele as obriga a se submeter a diversos tipos de perversão sexual. Elas são amarradas, chicoteadas, objetos esquisitos são enfiados em seus corpos, são obrigadas a beber urina. Tudo. Todo tipo de depravação. – Rubi estava séria agora. Apesar de se divertir com o tema, não conseguia se sentir indiferente ao relatar o que mulheres, como ela, sofriam.
-Interessante .
-Interessante? É nojento, perturbador. – Mas Grimm não respondeu. Perdido em pensamentos parecia considerar possibilidades.
De súbito, ergueu-se sobre a mesa e beijou Rubi, o que a assustou pois apesar de dormirem abraçados e fazerem sexo todas as noites, ele não demonstrava nenhum tipo de intimidade ou carinho especial por ela.
-Vou terminar de resolver uns assuntos pendentes e logo estarei de volta. – disse Grimm, já caminhando para a saída, deixando a garota perplexa, atrás de si.
Saiu para o dia, que se compunha basicamente de um céu acolchoado e corvos, que soturnos observavam a tudo de cima dos telhados das casas. Assobiava uma canção desafinada e imaginava se a providência estava a seu favor ou se o destino armava armadilhas para destruí-lo.
A igreja era grande. Feitaem pedra. Ocalor do sol qual conseguia adentrar o local. Grimm teve de abrir a grande porta principal, ao chegar e fechou-a atrás de si. Por um momento julgou que estivesse sozinho, mas então surgiu o padre ao fundo do templo, saído da sala reservada aos sacerdotes.
-A porta estava fechada porque ainda não é hora dos serviços, meu filho. – disse o homem. Era um homem grande, de cabeça e rosto nus, queixo largo e voz grave. Vestia um habito preto tradicional.
-Desculpe, sacerdote – respondeu Grimm se aproximando – mas cometi um pecado mortal e preciso de perdão.
-E o que fez, meu filho? – O olhar do homem tinha um quê de sádico, estava sempre curioso para saber do mal que outros faziam.
-Matei um homem dentro da igreja. – enquanto falava Grimm se adiantou sobre o padre e tomou seu pescoço entre os dedos. Apertou com força.
Tomado de surpresa o homem não reagiu imediatamente. Sentia as mãos se afundando em sua carne, o ar lhe faltava. Em segundos, tudo escureceu.
Abrindo os olhos com dificuldade, Grimm sentiu a cabeça estalar. Uma dor aguda atravessou seu cérebro que parecia ter se rachado. Demorou algum tempo até perceber que o padre, que se encontrava a sua frente, mãos no pescoço tentando aliviar a dor do aperto, lhe atingira com um chute extremamente forte no rosto o que lhe derrubara e o deixara desnorteado.
Grimm estava assutado. Pego de surpresa por aquela resistência se culpava por não ter vindo preparado. Colocou-se de pé o mais rápido que pode e apontou a mão na direção do outro, murmurando algumas palavras.
Magia ! – gritou o padre.
Um passo largo para frente e um tapa no rosto com as costas da mão foram o bastante pra desconcentrar Grimm e fazê-lo cambalear. A joelhada seguinte retirou o ar de seus pulmões e o fez cair de joelhos, novamente.
Era evidente que o sacerdote era um combatente experiente. Os próximo golpe, uma martelada com as mãos, na nuca do outro provavam isso, ao mesmo tempo que levavam o bruxo a inconsciência.
Quando recobrou a consciência, Grimm sentia os braços dormentes, estavam atados sobre sua cabeça e presos a uma corda que mantinha os pés dele fora do chão. Todo seu corpo doía. O sangue brotava aqui e ali em seu rosto ferido.
– Contrataram alguém para matar a mim – disse o padre, que parecia estar a espera do despertar de seu novo prisioneiro – e não avisaram a ele quem eu era. Muito esperto.
-Contratado, eu? Estou aqui pela diversão. – retorquiu Grimm tentando, em vão, sorrir.
-Pois bem. Vai ter sua diversão. E eu terei a minha.
Em meio a uma séries de instrumentos estranhos que haviam sobre a mesa da pequena sala para onde Grimm havia sido levado havia um flagelo. E tomando-o em mãos o sacerdote deixou claro que faria uso dele.
-Aprecie bem, pequena Ana – disse o homem, se dirigindo a uma garota que se encontrava no canto da sala, sentada, encolhida e tão silenciosa quanto um túmulo. Os olhos da moça estavam inchados de lágrimas e os pulsos vermelhos e marcados. Provavelmente era ela quem estivera amarrada ali, até bem pouco tempo – É assim que trato quem me aborrece.
As lâminas do chicote estalaram contra a carne das costas de Grimm arrancando lascas de pele e gordura. Sangue surgiu. Um sangue escuro, fétido, o cheiro da putrefação dos corpos. Mas o padre não percebeu. Eufórico que estava, focava-se apenas em infligir dor.
-Vou lhe contar uma história – disse ele, entre uma chibatada e outra – há alguns anos um bando de salteadores dominava o norte dessa região. “Os Chacais do Vale” era como nos chamavam. Eu era o líder do grupo. O medo que provocávamos nas pessoas era tanto que chamaram um regimento inteiro de soldados reais para nos combater. Claro que fomos derrotados e assim, tive que fugir e acabei encontrando nesse disfarce de sacerdote uma ótima desculpa. Mas estava com saudade da adrenalina. Sua pequena tentativa de assassinato me relembrou velhos tempos e por isso te matarei lentamente, um presente.
O sangue se espalhava por toda a parte. Um lago negro sob os pés de Grimm. Ele riu. Não pode evitar. A despeito da dor que sentia e dos incessantes golpes, ele riu.
-Engraçado – disse ele com a voz cortada – Eu pretendia presenteá-lo matando-o rapidamente. Nossas idéias de como gratificar alguém não são as mesmas.
Por um instante a poça de sangue no chão tremulou. Como a água de um lago que ondula quando um peixe se aproxima da superfície. Após uma pausa moveu-se novamente, com mais intensidade. E de novo.
Baltazar, “O Medonho”, como era conhecido o sacerdote em tempos idos, descansava o braço, ávido para recomeçar sua pequena festa particular. Grimm aproveitou o momento para murmurar as únicas palavras que poderiam lhe tirar daquela situação.
“Meu sangue é a passagem que procuras
O carrasco é a vítima que necessitas
A morte é a recompensa que buscas
Vem, oh andarilho escarlate.”
Ana estava acostumada com a dor e o sofrimento. Desde a chegada do padre na cidade ela era, como as outras, usada por ele em todo tipo de humilhação sexual e mesmo antes dele, seu pai já a molestava. Se sentia tão miserável que não se imaginava capaz do sentimento que a invadiu ao notar os movimentos daquele liquido asqueroso. Pavor absoluto.
O sangue, que inicialmente se convulsionara lenta e esparsamente, passara a borbulhar e ondular como um mar revolto. Até que se rompeu como uma bolha e de seu interior surgiu o medo.
Baltazar que se perdera em devaneios sobre sua vida passada acordou ao perceber um sibilar vindo do canto onde Ana estava. Ele viu nos olhos dela um medo que ele próprio nunca fora capaz de causar. Intrigado voltou-se para onde ela olhava. Gelou. Aquele homem bravo, cruel e poderoso sentiu a urina escorrendo pelas pernas. Tentou gritar, correr, fechar os olhos. Não era possível. Seu corpo não lhe obedecia. Apenas as lágrimas pareciam ter força para correr e deslizar pela sua face.
A coisa, saída de um pesadelo ainda não sonhado, avançou sobre o homem. E quando aquelas presas, garras ou o que quer que fosse aquilo perfuraram a carne e quebraram os ossos, Baltazar finalmente conseguiu gritar um horrendo último suspiro.
Já anoitecia quando Grimm voltou a taverna. Rubi estava encantada com o lugar e já havia se utilizado de suas artimanhas para arrancar um pouco de dinheiro dos locais. Inquisitiva quis saber onde ele estivera, mas ele não respondeu. Tão pouco falou sobre o pequeno saco que couro que trazia consigo e que parecia conter alguma coisa pequena, do tamanho de um coração, talvez.
Naquela noite, a revoada de corvos que parecia ter migrado para a cidade não foi incomodada pelo som do sino da igreja, indicando o início da missa. E pelas ruas da vila a notícia se espalhou rápido. O padre havia partido. Na igreja haviam encontrado rastros de sangue e a pobre Ana, que fosse lá o que havia sofrido não parecia mais capaz de falar, apenas fitava o vazio e balbuciava continuamente palavras desarticuladas como “sangue” e “morte”.