Balas, Bebidas e Jogos de Azar

A luz da vela oscilava, atingida por uma corrente quase imperceptível de ar.

A pequena chama esforçava-se por iluminar o tampo de uma mesa e era insuficiente para deixar claro que sobre essa haviam três objetos: uma moeda, um copo redondo cheio até a metade de um liquido avermelhado e um grande revólver.

Sentado à mesa, imóvel, um homem. Fitava hora o revolver, ora a moeda e parecia não se importar com os cabelos desgrenhados e sujos que lhe caiam pelo rosto a bloquear-lhe em parte a visão.

Fosse possível ler-lhe os pensamentos e veria-se que eram tão tranquilos quanto a expressão apática em seu rosto. Nenhum remorso, nenhuma dor, nenhuma saudade. Só um vazio, insondável, insensível, inevitável, insuportável.

Com um movimento lento e até desinteressado, o homem apanhou a arma sobre a mesa, mas não conseguiu ergue-la de uma vez. Calculara mal a força. Num segundo impulso mais arrojado, foi bem sucedido em desprendê-la da mesa.
Refletiu que uma arma tão pesada não deveria ser de grande utilidade. No entanto, outro pensamento açoitou-o lembrando-lhe que aquele era o revólver que ele mesmo utilizara por diversas vezes, para os mais diversos fins. E era na verdade, extremamente bem balanceado e leve.

Deixando de lado as lembranças, o homem ajeitou a posição do braço e a pistola mirou-se contra sua própria cabeça.
Sem delongas ou indecisões, puxou o gatilho. O cão bateu-se no fundo do tambor vazio, sem resposta.

O instrumento foi recolocado sobre a mesa, enquanto um suspiro escapava por entre os lábios secos e desanimados.
Os olhos do solitário pousaram-se então sobre a moeda e ele a pegou.

-Cara – disse ao vazio, enquanto a moeda saltava e começava a girar no ar, rodopiando cintilante, à parca luz. Acabado o impulso caiu, bateu sobre a mesa, balançou por alguns segundos e parou. Mais um corpo, imóvel, sem vida. O resultado: cara…

Dentes rangeram e o inconformado apostador empunhou a arma novamente contra o crânio e disparou. Duas vezes. Mas novamente o cão não encontrou eco ao seu ladrar metálico.

O silêncio do ambiente pareceu ainda mais pesado. Frustrado, o atirador ergueu o braço e tentou novamente, mirando o teto. Bang ! O cheiro sufocante e o som do estampido de pólvora explodindo encheram a sala. Uma pequena lasca de laje caiu sobre a mesa.

Aborrecido, o homem deixou o revólver sobre a mesa. Bebeu de um gole o wisky e murmurou entredentes, mal humorado:

-Sorte maldita.

O vento assobiou pela janela, e a vela oscilante se apagou.


Nadando com Tubarões

Não era um dia especialmente ensolarado. Mas o vento estava bom, soprando carinhoso as velas dos diversos navios que se encontravam no porto de Grona. A grande cidade era conhecida como um território de trégua, onde piratas sob as mais diversas bandeiras podiam se encontrar sem medo de confronto. Claro que a possibilidade de uma escaramuça não estava descartada, mas a guarda local era rigorosa e conhecida por sua brutalidade com infratores.

A tripulação do Céu Carmesim estava ansiosa para ir a terra. Fazia dois meses que tudo que viam era água e apesar de não ser, nem de longe, o maior período em que estiveram no mar, era reconfortante esticar os ossos fora do navio.

Por esse motivo, todos os marujos amontoados no convés torciam secretamente, ou abertamente, para serem escolhidos pela capitã, Carmem.

Ela, uma mulher jovem de cabelos curtos muito negros e olhos castanhos tinha a pele morena do sol e os lábios rosados. Falava com suavidade, mas séria, raramente sorria, se o fazia era para mostrar os dentes brancos e uma graça que alguns julgavam impossível naquela face endurecida pelo vento e a chuva. Tinha conquistado seu lugar como capitã por meio tanto da espada quanto da diplomacia e embora não fosse a melhor espadachim a bordo era uma lutadora astuta e contava com o apoio das figuras mais aterrorizantes da tripulação.

Havia Roxxar, homem forte de uma tribo de guerreiros. Era grande e musculoso, se destacava mesmo entre os seus, fosse pela força, pela ferocidade ou pelo peculiar gosto por homens bonitos. Vestia-se com roupas leves de marujo e mantinha os enormes cabelos loiros bem penteados e limpos. Tinha os lábios coloridos de vermelho e os olhos pintados de azul.

Outro era Danke, o inútil. A maioria dos capitães o atiraria para fora do navio por ser totalmente imprestável e preguiçoso. Incapaz de ajudar com um esfregão, aproveitava o tempo na cidade para festejar com mulheres e bebidas. No entanto, em meio ao perigo ele se mostrava indispensável. Era frio como um demônio e em situações onde a maioria dos homens se perderia em prantos ou desespero era capaz de agir racionalmente.

Sobre Heitor pouco poderia se dizer. Um velho calvo de bigodes espessos que ia com Carmem a toda parte e que apesar de sua aparência inofensiva nunca havia se ferido durante combate algum.

Muitos outros eram a brava gente do Céu Carmesim, mas foram esses que a capitã escolhera para levar consigo pela cidade naquele dia. Seria uma parada rápida e apesar da frustração de não serem escolhidos, muitos se sentiam intimamente felizes por não precisarem participar daquele encontro com Bartolo, o agiota.

– Não podemos passar em algum bordel no caminho, querida capitã? – perguntou Danke tão logo chegaram em terra.

-Você já sabe minha resposta, imprestável. – respondeu ela – Não podemos perder tempo aqui e não quero contribuir com sua fama de “ladrão de corações”.

A verdade é que apesar de não ser excepcionalmente bonito, o pirata era um boníssimo mentiroso e por onde quer que passassem deixava garotas suspirantes com suas histórias a respeito de ser um grande nobre, cheio de posses e títulos.

-Alguém tem que ser macho nessa tripulação. -retorquiu ele, dando um olhar maldoso para Roxxar, que era carinhosamente chamado de Roxxane pela tripulação.

-Ih, querido. – atalhou o enorme homem – Você não sabe o que é ser macho até ter um brutamontes lindo entre os braços.

Trocaram mais algumas alfinetadas enquanto caminhavam, mas sempre mantendo o bom humor. Haviam passado pelo diabo juntos e sabiam que entre si havia uma amizade sincera.

Conforme se aproximavam da enorme mansão que era a residência do agiota todos se sentiam um pouco angustiados e ao mesmo tempo eufóricos. Haviam precisado de uma enorme quantia de ouro para comprar um navio, após sua antiga nau, o “Andarilho da Espuma”, ser destruído em um combate que custara a vida de muitos membros da tripulação. Quitariam agora a dívida e a sensação que preenchia seus corpos era aquela que antecede a concretização de um sonho.

-A partir de agora – disse Carmem, colocando em palavras o sentimento do grupo – velejaremos livres novamente. Veremos a beleza que se esconde nas ilhas mais remotas do mundo e desfrutaremos das suas maravilhas.

– Eu, por mim – era Danke – me contento com sossego e belas mulheres.

-Você se contenta de ter onde dormir, Danke – disse Roxxar.

-Verdade. Podemos dizer que eu sou uma pessoa pouco ambiciosa.

Pararam. Haviam chegado até os portões da grande casa. Tomando a dianteira Carmem falou com os guardas. Um deles atravessou todo o pátio entrou na casa e voltou dizendo que eles deveriam esperar e que dentro de minutos seriam recebidos. Nesse meio tempo podiam aproveitar pra se desfazer de suas armas, deixando-as sob a guarda dele próprio. Sabendo que não tinham opção fizeram o sugerido.

O tempo se arrastava. Nenhum dos presentes entendia aquela demora. Do seu ponto de vista era simplesmente entregar o dinheiro e partir. Simples assim. Nem conseguiam conversar entre si, como se as palavras houvessem escapado para outras bandas a fim de não tomar partido naquela angustiante espera. Apenas Heitor continuava tranquilo. Ele, alias, parecia sempre tranquilo. Como um monge que atingiu a plenitude.

Depois dos longos minutos que se passaram um outro guarda trouxe a notícia de que podiam entrar. O grupo atravessou os grandes portões e caminhou rapidamente até a porta de entrada. Atravessaram-na intrépidos e deram no enorme salão de entrada que era também o escritório suntuoso de Bartolo.

Este, com um rosto marcado pela crueldade e a cobiça estava sentado a uma enorme mesa. Comia solitário uma refeição que daria pra três ou quatro. Atrás de si cerca de 12 homens fortes, vestindo coloridas roupas de seda, mas desarmados montavam sua guarda pessoal. Mas era a figura de um enorme minotauro, criatura homem e touro, ameaçadora e poderosa, quem garantia o respeito de todos que ali entravam.

– Muito boas tardes – disse ele, limpando os dedos engordurados com a boca. – Estão atrasados um mês. Achei até que teria de enviar alguns homens para lembrá-los de suas obrigações.

-Nós sempre cumprimos nossas obrigações, Bartolo – respondeu Carmem com uma pitada de desprezo na voz. – E trouxemos ouro o bastante para cobrir os juros pelo atraso.

-Maravilhoso ! – exclamou o homem – E onde esta toda essa riqueza?

Roxxar deu um passo a frente e colocou a pesada mochila que trazia às costas sobre a mesa. Um dos guardas tomou-a. Não conseguindo ergue-la sozinho foi auxiliado por outro homem. Ambos despejaram o conteúdo a frente do agiota.

Moedas de ouro em abundância, taças cravejadas de brilhantes, pedras preciosas. Havia no interior da mochila o bastante para pagar por dois barcos, mas a tripulação havia concordado em ceder toda aquela riqueza para evitar problemas. Não queria qualquer tipo de ressentimento numa das poucas cidades onde podiam se sentir em casa.

-Esplêndido, esplêndido. Sempre soube que emprestar dinheiro a mais bela capitã desses mares seria um bom negócio.

-Ótimo – retorquiu a mulher – Considere então que nossos negócios estão concluídos.

-A menos que você tenha mulheres pra vender -emendou Danke. E sorriu para Carmem quando ela o olhou com fogo nos olhos.

-Na verdade, pequeno bufão. – Bartolo tinha nos lábios um riso frio, maligno. – Recebi pela sua capitã e pelo bárbaro afeminado ofertas irrecusáveis.

Com um aceno de mão, o minotauro e os homens atrás dele formaram um círculo ao redor dos piratas. O ser bovino tinha os olhos fixos em Roxxar, provavelmente fora instruído a enfrentar o homem, pois a força deste era reconhecida por muitos. Avançou na direção dele. Enquanto os homens esperavam para ver quem lhes restaria por adversário.

Uma bota voou. Atingiu em cheio as narinas enormes do minotauro. Furioso a besta desviou seu olhar e viu Danke, homem pequeno e debochado, rindo enquanto segurava a outra bota. Cego de raiva esqueceu seu alvo original e estourou contra o outro. Apesar do ventre um pouco largo o pirata era veloz e desviou agilmente da criatura. Com movimentos calculados afastava a besta dos companheiros.

Os guardas, que tinham ordens prévias ficaram desorientados por um instante. Tempo bastante para o poderoso bárbaro que saltou sobre eles e com uma patada feroz derrubou dois de uma só vez.

Chamados à ação pela ofensiva do inimigo, os guardas arremeteram na luta. Oito contra o homem, dois contra a mulher. Bartolo praguejava vendo seu plano ir por água abaixo, mas confiava no poder do minotauro, que tão logo esmagasse Danke, derrotaria também Roxxar que atacado e seguro por todos os lados tinha dificuldade em golpear com a potência necessária. Esperneava e balançava os braços tentando se libertar.

Se movendo agilmente pelo grande salão Danke continuava a insultar a fera, fazendo-o de bobo. Mas o monstro era grande e a dado momento conseguiu encurralar o marinheiro contra uma parede.

-Pode vir vaca pintada – disse o homem com um brilho no olhar que fez a criatura parar. – Pode vir, mas tenha certeza de me matar, de outra maneira enfiarei meus dedos em seus olhos e os arrancarei da sua cara horrorosa.

O minotauro pareceu ponderar. Não temia por certo aquela pequena imitação de homem, mas sentia que talvez, mesmo sob o peso esmagador de seu punho, aquele rato se levantaria para morder-lhe a garganta e feri-lo de morte.

Por alguns momentos Roxxar sentiu-se impotente, mas o peso sobre si começou a diminuir e percebeu que era Carmem, que após derrubar seus antagonistas com golpes precisos no pescoço, viera em seu auxílio e utilizando-se as técnicas marciais que aprendera em Casvia incapacitava os inimigos rapidamente.

Com um dos braços liberto o gigante não teve dificuldades em arrebentar a mandíbula de um homem e partir o pescoço de outro. Antes que pudessem contar até dez, todos os guardas estavam no chão.

-Vá ajudar aquele imprestável – ordenou Carmem – antes que ele acabe morrendo.

A aberração taurina ainda debatia-se com a dúvida de atacar ou recuar quando sentiu uma pancada violenta. Atingida do lado esquerdo por um golpe de corpo todo de Roxxar o monstro cambaleou. Virou-se para o bárbaro e saltou sobre ele, satisfeito de enfrentar um igual e não uma monstruosidade que parecia não sentir medo de seu poder.

Atracaram-se então homem e fera. O pirata, gigante entre gigantes, bateu os punhos fechados contra a face bovina do outro e sentiu sua dureza. Os dedos pareciam trincar ao chocar-se com aqueles ossos poderosos. O minotauro por sua vez, reconhecia a força daquele que apesar da bizarra aparência era um bravo guerreiro. Ele era, no entanto, mais forte que o homem.

Desarmados, Carmem e Danke podiam apenas assistir enquanto o companheiro se debatia naquela peleja de morte. Viram-no agarrar, ser agarrado, bater-se e cansar-se.

O corpo de Roxxar doía todo. Como se estivesse a lutar contra uma terrível tempestade em alto mar. Não aceitava a derrota, mas sabia que era questão de tempo até ser totalmente subjugado pela besta. Agarrou-o então pelos chifres e num esforço hercúleo fez a fera curvar-se. Essa porém, tomando impulso ergueu-se novamente, demonstrando toda sua força.

Aproveitando o momento o bárbaro puxou contra si a fera. Usando a força do monstro contra ele próprio jogou-se de costas no chão e com um pé cravado na barriga do adversário o fez voar pela sala.

Não acostumado a ser arremessado do chão o minotauro caiu sem técnica e seu braço partiu-se sob o peso de seu corpo colossal. Quebrantado pela dor, ele não se levantou.

Carmem, vendo o companheiro a salvo, voltou seus pensamentos para Bartolo. Percebera-o se esgueirando pela sala ao ver seus homens caídos e imaginava quando ele voltaria com reforços. Notou, porém, que ele não havia deixado o local. Estava sentado no chão, mãos na cabeça cobrindo os olhos, murmurava frases sem sentido e tão baixo que mal podiam ser ouvidas. A seu lado estava Heitor a olhá-lo com indiferença.

-Vamos embora daqui- gritou a mulher. – os guardas do portão estão armados então provavelmente teremos de lutar.

E lutaram. Mas foi uma batalha rápida. Pois os guardas não esperavam por aquela fuga e a carga inicial de  Roxxar e Danke lado a lado, ferozes e desesperados, os pegara de surpresa. Deixaram suas posses para trás e correram o mais que podiam até alcançar o Céu Carmesim que zarpou rapidamente sem despedidas ou segundos pensamentos.

-Você precisa relaxar – a voz doce e musical de Lucia, linda menestrel de cabelos da cor do sol, era tão efetiva quanto suas mãos que massageavam as costas de Carmem para relaxá-la. – Mesmo que, de fato, Bartolo tenha aliados e eles queiram vingança, não somos assim tão importantes para que eles mobilizem uma força poderosa contra nós.

-Sim. Eu só estou frustrada – respondeu a capitã que partilhava a cama com a outra e deitada sob seu corpo delgado e macio descansava. – Tudo sempre foge ao meu controle.

-Não pense mais nisso. – retorquiu a loira com voz autoritária e com um puxão áspero fez a outra virar-se de frente pra ela. – Agora você está a salvo, estamos todos. E você vai se divertir.

Sem esperar por resposta Lucia beijou os lábios de Carmem e deitou-se sobre ela. Os seios de ambas se roçaram numa carícia involuntária e deliciosa. A que estava por baixo teve os cabelos puxados com força e gemeu de prazer. E ali, em meio as almofadas macias e cobertas de seda, na sala do capitão, elas se deliciaram uma da outra.

No convés Danke cochilava sob o sol. Roxxar olhava os próprios ferimentos da batalha contra o minotauro e sorria orgulhoso, enquanto o menino Tom cuidava dos hematomas com uma pomada misteriosa. Heitor olhava o mar, sempre calmo. Olga, a cozinheira, cantarolava enquanto preparava a ceia e todos os marinheiros descansavam, exceto por aqueles que estavam em turno de serviço.

E assim, numa tarde rubra, o Céu Carmesim velejou pelo oceano até encontrar o horizonte.


O Chacal do Vale

A viagem de Bern até Iniasa levara quase uma semana toda. Rubi estava exausta e se sentia imunda. Precisava de um banho, com certeza. O trajeto fora agradável, no entanto.

Durante o dia Grimm contava a ela lendas e histórias interessantes a respeito de diversos lugares e ela contava a ele sobre o que fizera em sua adolescência em Asnar e o porquê de ter sido expulsa por seus pais.

A noite dormiam juntos. Compartilhavam a barraca e seus corpos. Para Rubi era um momento muito aguardado, não apenas pelo prazer, mas também por ser um dos poucos momentos em que suas terríveis cólicas diminuíam.

Sobre o passado de Grimm ou seu destino ela pouco sabia. Sempre que perguntava algo a respeito ele desconversava, mudando o foco da conversa para uma diversidade de coisas diferentes.

Iniasa era uma vila pequena e agrícola. Os habitantes locais eram gente simples que temia o escuro e acreditava em todo tipo de superstição. Mas parecia haver algo de errado ali. Ou pelo menos foi o que pensaram Rubi e Grimm, já aos primeiros passos pelo lugar.

As mulheres tinham a expressão deprimida e sofrida. Andavam olhando o chão, pensando longe como se contando o tempo para que uma tragédia acontecesse. Já os homens estavam cabisbaixos, evitavam se olhar nos olhos, como se envergonhados da própria existência. Quando alguém sorria, logo engolia o riso, arrependido de tal ação.

-O que acha que está acontecendo? – perguntou Rubi, curiosa.

-Não faço idéia, mas não é problema nosso. – respondeu Grimm e continuou – Aquela casa grande ali me parece ser uma taverna, pode reservar um quarto enquanto eu tento conseguir um cavalo e uma carroça?

-Carroça? Pra que? – Rubi, sempre muito interessada, questionava sobre tudo.

-Não havia me dado conta de que, talvez, ao longo dessa viagem eu vá estar carregando um monte de tralha. – sorriu – Me espera lá, tudo bem?

Meio-dia. O sol queimava impiedoso no céu, mas sua luz mal fazia para trespassar as espessas nuvens que vagavam pelo ar, naquele dia. Sobre o teto da estalagem, um corvo grasnava.

Atravessando a porta Grimm pode observar que o lugar era bastante humilde. Duas mesas, ambas vazias, e um balcão pequeno compunham o salão principal. Uma escada levava aos quartos e uma porta, provavelmente a cozinha.

Com um aceno e um sorriso Grimm chamou a atenção da atendente e cumprimentou-a, muito polidamente, elogiou o lugar, apesar da simplicidade e perguntou por Rubi. Soube que ela tinha saído após reservar um quarto. Pediu por comida, carne, queijo, vinho.

Enquanto esperava, aproveitou pra questionar a garota a respeito do sentimento de melancolia que percorria a cidade. A resposta foi um simples “Não sei do que esta falando, está tudo bem”. Ao longo da manhã por todos os lugares onde passara procurando por uma montaria a resposta fora semelhante, isso o intrigava, mas não tinha tempo pra se preocupar com isso.

Terminara de comer e limpava o rosto e a barba quando Rubi entrou no recinto e sentou-se a sua frente. Sorria de orelha a orelha e olhava Grimm como o gato que olha o rato pensando em quanto tempo vai se divertir com ele, antes de devorá-lo.

-A julgar pelo seu rosto – disse ele – acho que encontrou uma mina de ouro ou o elixir da vida eterna.

-Ah – ela agia como uma menininha ingênua e simplória de novo – eu descobri porque as pessoas estão cabisbaixas. Mas não quero te incomodar com o assunto. Como você disse, não é problema seu.

Notando a curiosidade cintilando nos olhos do homem ela continuou: – Mas é uma coisa tão interessante. Macabra, cruel, mas interessante.

-Então me diga de uma vez!

-Pra quê? Não é algo que possamos resolver.

-Tem razão – concordou Grimm – é melhor esquecer o assunto.

-Tudo bem, tudo bem. Eu conto – decidiu a garota vendo que ele não morderia a isca.

-Há alguns meses atrás – começou ela – um padre novo chegou à cidade. O antigo tinha morrido de velhice parece. Depois de algum tempo por aqui, o novo sacerdote começou a exigir coisas um tanto embaraçosas das mulheres, dizendo que era uma prova de deus e que aquelas que não se submetessem seriam consideradas impuras, bruxas e seriam sacrificadas. O tempo foi passando e hoje o tal padre faz todo tipo de atrocidade com as mulheres daqui e os homens, com medo da punição divina não se levantam contra ele.

-Que tipo de atrocidades? – perguntou Grimm vislumbrando uma sorte inesperada.

-Pelo que me disseram, ele as obriga a se submeter a diversos tipos de perversão sexual. Elas são amarradas, chicoteadas, objetos esquisitos são enfiados em seus corpos, são obrigadas a beber urina. Tudo. Todo tipo de depravação. – Rubi estava séria agora. Apesar de se divertir com o tema, não conseguia se sentir indiferente ao relatar o que mulheres, como ela, sofriam.

-Interessante .

-Interessante? É nojento, perturbador. – Mas Grimm não respondeu. Perdido em pensamentos parecia considerar possibilidades.

De súbito, ergueu-se sobre a mesa e beijou Rubi, o que a assustou pois apesar de dormirem abraçados e fazerem sexo todas as noites, ele não demonstrava nenhum tipo de intimidade ou carinho especial por ela.

-Vou terminar de resolver uns assuntos pendentes e logo estarei de volta. – disse Grimm, já caminhando para a saída, deixando a garota perplexa, atrás de si.

Saiu para o dia, que se compunha basicamente de um céu acolchoado e corvos, que soturnos observavam a tudo de cima dos telhados das casas. Assobiava uma canção desafinada e imaginava se a providência estava a seu favor ou se o destino armava armadilhas para destruí-lo.

A igreja era grande. Feitaem pedra. Ocalor do sol qual conseguia adentrar o local. Grimm teve de abrir a grande porta principal, ao chegar e fechou-a atrás de si. Por um momento julgou que estivesse sozinho, mas então surgiu o padre ao fundo do templo, saído da sala reservada aos sacerdotes.

-A porta estava fechada porque ainda não é hora dos serviços, meu filho. – disse o homem. Era um homem grande, de cabeça e rosto nus, queixo largo e voz grave. Vestia um habito preto tradicional.

-Desculpe, sacerdote – respondeu Grimm se aproximando – mas cometi um pecado mortal e preciso de perdão.

-E o que fez, meu filho? – O olhar do homem tinha um quê de sádico, estava sempre curioso para saber do mal que outros faziam.

-Matei um homem dentro da igreja. – enquanto falava Grimm se adiantou sobre o padre e tomou seu pescoço entre os dedos. Apertou com força.

Tomado de surpresa o homem não reagiu imediatamente. Sentia as mãos se afundando em sua carne, o ar lhe faltava. Em segundos, tudo escureceu.

Abrindo os olhos com dificuldade, Grimm sentiu a cabeça estalar. Uma dor aguda atravessou seu cérebro que parecia ter se rachado. Demorou algum tempo até perceber que o padre, que se encontrava a sua frente, mãos no pescoço tentando aliviar a dor do aperto, lhe atingira com um chute extremamente forte no rosto o que lhe derrubara e o deixara desnorteado.

Grimm estava assutado. Pego de surpresa por aquela resistência se culpava por não ter vindo preparado. Colocou-se de pé o mais rápido que pode e apontou a mão na direção do outro, murmurando algumas palavras.

Magia ! – gritou o padre.

Um passo largo para frente e um tapa no rosto com as costas da mão foram o bastante pra desconcentrar Grimm e fazê-lo cambalear. A joelhada seguinte retirou o ar de seus pulmões e o fez cair de joelhos, novamente.

Era evidente que o sacerdote era um combatente experiente. Os próximo golpe, uma martelada com as mãos, na nuca do outro provavam isso, ao mesmo tempo que levavam o bruxo a inconsciência.

Quando recobrou a consciência, Grimm sentia os braços dormentes, estavam atados sobre sua cabeça e presos a uma corda que mantinha os pés dele fora do chão. Todo seu corpo doía. O sangue brotava aqui e ali em seu rosto ferido.

– Contrataram alguém para matar a mim – disse o padre, que parecia estar a espera do despertar de seu novo prisioneiro – e não avisaram a ele quem eu era. Muito esperto.

-Contratado, eu? Estou aqui pela diversão. – retorquiu Grimm tentando, em vão, sorrir.

-Pois bem. Vai ter sua diversão. E eu terei a minha.

Em meio a uma séries de instrumentos estranhos que haviam sobre a mesa da pequena sala para onde Grimm havia sido levado havia um flagelo. E tomando-o em mãos o sacerdote deixou claro que faria uso dele.

-Aprecie bem, pequena Ana – disse o homem, se dirigindo a uma garota que se encontrava no canto da sala, sentada, encolhida e tão silenciosa quanto um túmulo. Os olhos da moça estavam inchados de lágrimas e os pulsos vermelhos e marcados. Provavelmente era ela quem estivera amarrada ali, até bem pouco tempo – É assim que trato quem me aborrece.

As lâminas do chicote estalaram contra a carne das costas de Grimm arrancando lascas de pele e gordura. Sangue surgiu. Um sangue escuro, fétido, o cheiro da putrefação dos corpos. Mas o padre não percebeu. Eufórico que estava, focava-se apenas em infligir dor.

-Vou lhe contar uma história – disse ele, entre uma chibatada e outra – há alguns anos um bando de salteadores dominava o norte dessa região. “Os Chacais do Vale” era como nos chamavam. Eu era o líder do grupo. O medo que provocávamos nas pessoas era tanto que chamaram um regimento inteiro de soldados reais para nos combater. Claro que fomos derrotados e assim, tive que fugir e acabei encontrando nesse disfarce de sacerdote uma ótima desculpa. Mas estava com saudade da adrenalina. Sua pequena tentativa de assassinato me relembrou velhos tempos e por isso te matarei lentamente, um presente.

O sangue se espalhava por toda a parte. Um lago negro sob os pés de Grimm. Ele riu. Não pode evitar. A despeito da dor que sentia e dos incessantes golpes, ele riu.

-Engraçado – disse ele com a voz cortada – Eu pretendia presenteá-lo matando-o rapidamente. Nossas idéias de como gratificar alguém não são as mesmas.

Por um instante a poça de sangue no chão tremulou. Como a água de um lago que ondula quando um peixe se aproxima da superfície. Após uma pausa moveu-se novamente, com mais intensidade. E de novo.

Baltazar, “O Medonho”, como era conhecido o sacerdote em tempos idos, descansava o braço, ávido para recomeçar sua pequena festa particular. Grimm aproveitou o momento para murmurar as únicas palavras que poderiam lhe tirar daquela situação.

“Meu sangue é a passagem que procuras

O carrasco é a vítima que necessitas

A morte é a recompensa que buscas

Vem, oh andarilho escarlate.”

Ana estava acostumada com a dor e o sofrimento. Desde a chegada do padre na cidade ela era, como as outras, usada por ele em todo tipo de humilhação sexual e mesmo antes dele, seu pai já a molestava. Se sentia tão miserável que não se imaginava capaz do sentimento que a invadiu ao notar os movimentos daquele liquido asqueroso. Pavor absoluto.

O sangue, que inicialmente se convulsionara lenta e esparsamente, passara a borbulhar e ondular como um mar revolto. Até que se rompeu como uma bolha e de seu interior surgiu o medo.

Baltazar que se perdera em devaneios sobre sua vida passada acordou ao perceber um sibilar vindo do canto onde Ana estava. Ele viu nos olhos dela um medo que ele próprio nunca fora capaz de causar. Intrigado voltou-se para onde ela olhava. Gelou. Aquele homem bravo, cruel e poderoso sentiu a urina escorrendo pelas pernas. Tentou gritar, correr, fechar os olhos. Não era possível. Seu corpo não lhe obedecia. Apenas as lágrimas pareciam ter força para correr e deslizar pela sua face.

A coisa, saída de um pesadelo ainda não sonhado, avançou sobre o homem. E quando aquelas presas, garras ou o que quer que fosse aquilo perfuraram a carne e quebraram os ossos, Baltazar finalmente conseguiu gritar um horrendo último suspiro.

Já anoitecia quando Grimm voltou a taverna. Rubi estava encantada com o lugar e já havia se utilizado de suas artimanhas para arrancar um pouco de dinheiro dos locais. Inquisitiva quis saber onde ele estivera, mas ele não respondeu. Tão pouco falou sobre o pequeno saco que couro que trazia consigo e que parecia conter alguma coisa pequena, do tamanho de um coração, talvez.

Naquela noite, a revoada de corvos que parecia ter migrado para a cidade não foi incomodada pelo som do sino da igreja, indicando o início da missa. E pelas ruas da vila a notícia se espalhou rápido. O padre havia partido. Na igreja haviam encontrado rastros de sangue e a pobre Ana, que fosse lá o que havia sofrido não parecia mais capaz de falar, apenas fitava o vazio e balbuciava continuamente palavras desarticuladas como “sangue” e “morte”.